terça-feira, 26 de julho de 2011

Cabeça de Porco

O tempo começa a ficar cada vez mais curto, e eu bem perto de sair da faculdade
O meu assunto para o estudo monográfico já escolhi: a Cyclone
Nunca pensei que fosse me envolver tanto e me dedicar tanto a essa pesquisa, mas o fato é que ela tem me mobilizado mesmo, com uma ação sincera. Ás vezes me comovo, me vejo compartilhando sentimentos, me abalo...
E hoje trago aqui o resultado da minha leitura do livro Cabeça de Porco, escrito a seis mãos por MV Bill, Celso Athaíde e Luís Eduardo Soares em 2005
Fui lendo sem saber ao certo se conseguiria estabelecer ligações entre minha pesquisa e o conteúdo do livro, e pude ver que sim, muitas e muitas ligações estava postas, não só em relação à minha pesquisa, mas também em relação a tantas realidades que as pessoas insistem em não querer ver

I O Rio como influência da cultura da violência



“Ele usava uma espada muito parecida com aquela que a imprensa mostrou, muitas vezes, como sendo a que matou Tim Lopes – se era mesmo, ninguém sabe. No início, achei que fosse coincidência, mas quando começamos a filmar, percebi que eles usavam as mesmas expressões do Rio de janeiro. Chamavam os inimigos de “alemão”, diziam-se do “Comando Vermelho”; seus inimigos eram nomeados “Terceiro Comando”, e muitas outras gírias totalmente cariocas eram empregadas. Ele reproduziam com precisão o dialeto das favelas cariocas.Era a primeira vez  que tínhamos visto um caso como esse, parecia que os comandos do Rio de janeiro tinham franchaises espalhados por lá.

Ali eu vi claramente o quanto a televisão contribui e contribuiu para a nacionalização da criminalidade; como a televisão massifica e acaba estimulando as pessoas a fazer o que se estampa na tela. Não estou dizendo que aquele cara seja bandido por causa da TV, estou dizendo que a forma como as TVs divulgam as notícias acaba sendo a maior fonte de alimentação para esses jovens, que já têm tendências sociais a essas práticas a partir de seu desejo e de suas limitações. A TV consolida a informação e as posições deles. Pior que isso, as TVs não somente fazem as matérias de forma equivocada – considerando-se o ponto de vista do qual observo a situação, claro-, como também colaboram pra manutenção e ampliação do problema, ao desenvolver campanhas de propaganda que giram em torno da valorização de sexo, status e poder(...)”
(Uma Noite em Joinville, por Celso Athaíde, p.55)


“Com os olhos comecei a procurar aquele que poderia ser o “patrão” do morro. Até que deparei com um maluco branco, alto, meio banhoso, com cara de 18 anos no máximo. Ele tinha em uma das mãos um baseado da grossura de um dedo e do tamanho de uma caneta. Tinha cabelo rasteiro e usava costeleta. Bermuda da Cyclone, meias pretas, tênis Adidas Cooper, camisa cinza com estampa da foto do Mike Tyson. Levava na cintura uma espada dentro de uma bainha(...)”
(Curitiba: nos fundos da cidade modelo, por MV Bill, p.63) 
E a onda da Cyclone começou mesmo nos morros do Rio de janeiro e se espalhou pelo resto do Brasil, talvez reflexo dessa referência que é o Rio de Janeiro como fonte propagadora dessa cultura.

II A invisibilidade

“Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível. Como já deve ser bastante claro a esta altura, há muitos modos de ser invisível e várias razões para sê-lo. No caso desse nosso personagem, a invisibilidade decorre principalmente do pré-conceito e indiferença. Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular, desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.
Quem está ali na esquina não é o Pedro, o Roberto, a Maria, com suas respectivas idades e histórias de vida. Quem está ali é o “moleque perigoso” ou a “guria perdida”, cujo comportamento passa a ser previsível. Lança sobre uma pessoa um estigma correspondente a acusá-la simplesmente pelo fado de ela existir. Prever seu comportamento estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas. Como aquilo que se prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil. Quer dizer, o preconceito arma  o medo que dispara a violência, preventivamente
(Invisibilidade, reconhecimento e a fonte afetiva do crime, por Luís Eduardo Soares, p. 175)

III Identidade

“Identidade é uma palavra enigmática: por um lado, significa a originalidade de alguém, a singularidade que torna cada pessoa incomparável e única; por outro lado, adquire o sentido oposto ao designar a semelhança que aproxima duas pessoas (...) ”
"(...) criamo-nos a nós mesmos na interações, seja em conformidade com os outros, seja em contraste com eles.”
“Numa direção ou noutra, a identidade para os jovens é um processo penoso e complicado. As referências positivas escasseiam e se embaralham com as negativas. A construção de si é bem mais difícil que escolher uma roupa, ainda que analogia não seja de todo má, uma vez que o interesse por uma camisa de marca, pelo tênis de marca, corresponde a um esforço para ser diferente e para ser igual, para ser diferente-igual-aos-outros , isto é, daqueles que merecem a admiração das meninas( e da sociedade ou dos segmentos sociais que mais importam aos jovens – o que também varia, é claro). Roupas, posturas e imagens compõem uma linguagem simbólica inseparável de valores."
 “(...) A identidade só existe no espelho e esse espelho é olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura de significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. Nós nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Por isso construir uma identidade é necessariamente um processo social, interativo, de que participa uma coletividade e que se dá  no âmbito de uma cultura e no contexto de um determinado momento histórico.”
“Assim como não inventamos uma linguagem, individualmente, assim como não há linguagem privada, tampouco há identidade de um homem-ilha, de uma mulher-ilha, apartada de toda e qualquer ralação humana. Nos jogos de olhares, palavras e sentimentos, trocamos sinais e mais sinais, pelos movimentos do corpo e as expressões do corpo. Estamos imersos em florestas de símbolos, como dizia Baudelaire, e somos seres de linguagem, como a filosofia, a antropologia e a psicanálise nos ensinaram. Toda linguagem é material e datada, é construção humana coletiva, em permanente mudança. Por conseqüência, sendo a identidade uma experiência da relação, que se dá na esfera da intersubjetividade, dos símbolos das linguagens, da cultura, ela é sempre uma experiência histórica e social.”
(Identidade em Obras I: Adolescência, por Luís Eduardo Soares, p. 205 a 207)

IV O Brasil e a realidade da guerra

Curioso e paradoxal é que, no Brasil, para os jovens pobres, não há adolescência: salta-se direto da infância ao mundo do trabalho (ou do desemprego). É mais ou menos o que acontece, em nosso país, com as etapas e o processo civilizatório. Parece que estamos vivendo uma regressão, em alguns aspectos, da qual resulta a convivência entre etapas históricas diferentes, cada uma com suas características sociais e culturais: hoje, no Brasil,  os homens não são treinados apenas para a guerra e os valores dominantes na socialização dos meninos não são valores ligados à guerra. Será? Em certa medida, com a ascensão vertiginosa da violência e do desemprego no quadro de estagnação econômica e aprofundamento das desigualdades, com o ingresso cada vez mais precoce dos jovens na economia informal, será que estamos gestando um híbrido tropical muito peculiar, com mais ingredientes tradicionais da cultura masculina belicista e menos elementos da modernidade ocidental européia em que forjamos, como nação?(...) não estamos combinando no Brasil, traços avançados da democracia participativa com a supressão a galope da adolescência e a revalorização da moralidade guerreira tradicional?
(Identidade em Obras II: Adolescência e a problemática ardilosa das “causas” da violência,  por Luís Eduardo Soares, p. 208 a 211)
Ele estava me pedindo muita coisa: tênis da moda, roupa da moda, essas coisas. Eles pedem, todos eles pedem(...) Hoje em dia, não tem mais bicicleta para o menor, eles querem moto. Se eles entram para o tráfico, eles conseguem a moto. E eles conseguem isso com muita facilidade.
(...) como se olha, vivendo numa comunidade que só tem vagabundo que foi criado com a gente desde pequeno, cresceu, escolheu o outro lado. Como é que a gente vai deixar de falar com essas pessoas? Se eu moro aqui. Não tem como, eles vão ser meus amigos até morrer. Não foram eles que escolheram essa vida. Tenho diferença com eles, mas é uma opção de vida, é um meio de vida. Eles não estão ali porque gostam, porque ninguém gosta de ficar sem dormir, sofrer, correr da polícia. É uma opção de sobrevivência. Todos eles têm família. Se eles pudessem, saíam.
A televisão atrapalha muito, sabia? Mostrando as coisas que acontecem. Meu filho acha bonito aparecer como um cara perigoso pras comunidades, pra polícia.(...)
O que estimula mais ele, não é o dinheiro não, é mais ele poder aparecer. Mostrar quem é, mostrar que pode, entendeu?
É também a pressa de ganhar dinheiro. Hoje em dia, a evolução do mundo está rápida, muito rápida. Os meninos ficam sabendo desses corruptos que roubam milhões do INSS. E nada acontece. Quem vai querer uma vida de trabalho duro e honesto?
A televisão mostra muita coisa errada. A gente vê cada coisa bárbara na televisão. Isso aí serve de exemplo pros pequenos; eles acham que é fácil: os grandões fazem e não dá nada, vou fazer também. Querem ver um meio mais rápido de ganhar dinheiro. Tudo é a facilidade de ganhar dinheiro.
(Labirinto, depoimento de um pai de traficante, p. 212 e 213)
V Um pedido de socorro
(...) Um dia um traficante dá a um desse meninos uma arma. Quando um desses meninos nos parar na esquina, apontando-nos esta arma, estará provocando em cada um de nós um sentimento – o sentimento do medo, que é negativo, mas é um sentimento. Ao fazê-lo, saltará da sombra que desaparecera e se tornará visível. A arma será o passaporte para a visibilidade.
Saltando para fora do escuro em que o guardamos e o esquecemos, o garoto armado readquire densidade antropológica, isto é, vira um homem de verdade. Antes, invisível, era um fantasma transparente, portador de uma carcaça porosa e imperceptível.(...) Pois agora tudo mudou. Num passe de mágica, o mundo ficou de cabeça para baixo: quem passava sem vê-lo lhe obedece. Invertem-se as posições. Quem desfila sua soberba destilando indiferença, agora submete-se à autoridade do jovem desconhecido. Celebra-se um pacto físico: o jovem troca seu futuro, sua alma, seu destino, por um momento de glória, um momento fugaz de glória vã; seu futuro pelo acesso à superfície do planeta, onde se é visível.
Pois é aí que as instituições que dirigem a sociedade metem os pés pelas mãos. Quando seria necessário reforçar a auto-estima dos jovens transgressores no processo de sua recuperação e mudança, as instituições jurídico-políticas os encaminham na direção contrária: punem, humilham e dizem a eles: “Vocês são o lixo da humanidade.” É isso que lhes é dito quando são enviados às instituições “socioeducativas”, que não merecem o nome que têm – o nome mais parece uma ironia(...)

As instituições os condenam à morte simbólica e moral, na medida em que matam seu futuro, eliminando as chances de acolhimento, revalorização, mudança e recomeço. Foi dada a partida no círculo vicioso da violência e da intolerância. O desfecho é previsível; a profecia se cumprirá: reincidência. A carreira do crime é uma parceira entre a disposição de alguém  para transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa pessoa desista(...)
(O menino invisível se arma, por Luís Eduardo Soares, p. 215 a 219)
 VI O assalto da visibilidade
Eu acho que mulher gosta de viver perigosamente; mulher gosta de uma arma; acho que é sentimento de poder.

A mina ta com o cara com o maior fuzilão, ninguém olha, ninguém mexe, ninguém fala nada(...) Nessa, ela cheia de marra, a calça é da Gang e está tipo gostosona, e ninguém se mete com ela, ela está na favela, e todo mundo fumando maconha, aquele fervo. Cheiro de maconha, vagabundo de revólver, vários carros novos chegando – Audi, Honda, Mercedes -, tudo roubado e tudo com vagabundo de fuzil, e elas estão no meio. Elas gostam disso(...)
Tu não imagina, a mulherada chega aqui de Palio zerinho, os pais são da Barra, elas moram na Barra, mas parece que não encontram lá o cara certo, e vem procurar aqui.
(Quer ganhar uma mulher? Bota um fuzil no pescoço, depoimentos de entrevistado, p.224)
O jovem pede a carteira; aponta a arma para minha cabeça e pede  a carteira. Pede, não. Ordena. Velha fórmula: a bolsa ou a vida. Leva o dinheiro. Com a grana compra um tênis de marca. Onde está a fome de sentido de valor? Onde o clamor por reconhecimento? A arma é o passaporte para a visibilidade e instrumento de auto-afirmação ou é só atalho para o cofre?
Lado B: o dinheiro obtido no assalto troca-se pelo tênis de marca, pela camisa de marca. Essa frivolidade é uma pista. A camisa com o nome e sobrenome e o tênis notabilizado pelo pedigree apontam numa direção: a grana vai para a marca, não para o calçado ou para a camisa, não para o atendimento a necessidades físicas(...)No caso, o que está em jogo, é a busca pelo reconhecimento é a busca pelo reconhecimento e valorização, a marca é o que importa; é a marca o objeto cobiçado; é ela que atende a necessidade. O vestuário (na moda) interessa como sinal de distinção, isto é, de valorização. O fetiche na moda, cumpre essa função: quem a consome deseja diferenciar-se  para destacar-se, valorizando-se – mal percebe que copia o movimento de todos, tornando-se , assim, indistinguivelmente banal. De todo modo, mesmo iludindo-se com o ardil da moda, mesmo enganando-se – como aliás, todos os jovens(e os não-tão-jovens) das camadas médias e das elites -, os jovens invisíveis copiam os hábitos dos outros para identificar-se com os outros, passando a valer o que eles valem para a sociedade. Inclusão é o sonho, respeito é a utopia. Aí esta o fio da meada que nos trouxe da grana ao símbolo(...)
Quando o jovem compra o tênis de marca ganha de brinde o ingresso no grupo – no grupo dos que reconhecem a marca e valorizam a moda de que envolve determinadas escolhas estéticas mas também, freqüentemente, algumas escolhas éticas. A moda envolve uma certa coreografia, posturas, comportamentos e uma certa agenda. Se for mais ambiciosa o como foram os movimentos hippie, punk, yuppie – envolverá até uma ideologia ou um conjunto de crenças.(...)
Todos nós nos sentimos reconfortados quando nos filiamos a algum grupo. Participar de um grupo é gratificante porque fortalece o sentimento de que temos valor e a sensação de que aquilo que pensamos e sentimos é compartilhado por outros, o que lhe revigora o valor de verdade e de correção moral. Filósofos já disseram que realidade é ilusão compartilhada. Nem é preciso ser tão radical para compreender a relevância desse apoio mútuo.
 Em geral, somos membros de vários grupos ao mesmo tempo: família, igreja, partido, sindicato, associação de moradores, clube, etc. cada entidade tem suas próprias regras de funcionamento e condições de pertencimento. Os grupos se fortalecem quando enfrentam conflitos externos a rivalidade vivida fora do grupo aproxima os membros(...)Por isso, nada com a guerra para unir(...)
Não parece lógico, portanto, que jovens invisíveis, carentes de tudo que uma participação em um grupo pode oferecer, procurem aderir a grupos cuja identidade se forja na e para a guerra? Entende-se o sucesso das facções do tráfico no recrutamento da gurizada(...)
VII As gata também pira

(...)o julgamento que importa aos meninos em armas é o veredicto das meninas(...)tudo está contido na aprovação delas, que e manifesta na bandeira do desejo e da admiração(...)
Se o desejo das gurias é o desejo dos guris(...), a história entorta quando muitas, entre elas, elegem como modelo o macho violento, arrogante, poderoso e armado(...) instaura-se um magnetismo perverso que enseja a emulação da prepotência armada. As moças, aquelas encantadas pela estetização do mal, atuam como mediadoras da violência, turbinando a adrenalina de seus pares(...)
(...)é preciso que se diga que as gurias estão se tornando mais do que meras mediadoras ou muletas que  sustentam  modelos de identificação para os guris. Elas têm assumido posições de destaque, frequentemente como protagonistas, para o bem e para o mal. Ou seja, têm matado e morrido mais, participando do crime, e têm salvado e morrido mais, participando dos esforços de paz. O que não significa  que, no mundo do crime, elas não continuem sendo oprimidas e humilhadas. O crime parece concentrar o que há de pior na sociedade: a busca do dinheiro a qualquer preço e o machismo mais despudorado e violento.
(Guris e gurias mostram suas armas, por Luís Eduardo Soares, p. 226 a 232)
 VIII Brasil que banaliza
(...) Já aludi ao fato de que assalto à mão armada seria inconcebível em outras sociedades e culturas. A sociedade brasileira banaliza o delito e se aprimora na arte de desmoralizar alguns limites que nossa própria tradição cultural reverencia, pulverizando referências, diluindo critérios, relativizando responsabilidades e sedando o espírito crítico. O dilentismo blasé com que muitas vezes lhe damos com as questões éticas consagrou uma bizarra combinação entre paternalismo e rigor punitivo.
O fato é que no Brasil, a violação dos direitos trivializou-se, a agressão é quase um capricho, a violência compara-se à frivolidades, o homicídio rotinizou-se(...) Nas vilas e favelas, a rapaziada do movimento associa armas e violência à virilidade, masculinidade e virtude pessoal(...) 
(A cultura da paz, por Luís Eduardo Soares, p. 239 e 240)
IX Lei e vítima
Para a população, crimes não são transgressões da lei pena, são violações culpáveis da lei moral(...) Como não há consenso na sociedade quanto à lei moral, a lei penal  deve ser respeitada como acordo prático possível(...)

(...) A vítima letal brasileira típica é jovem, do sexo masculino, te entre 15 e 14 anos(...) mora nas vilas, favelas ou periferias das metrópoles e, frequentemente é negra(...)
Há um déficit de jovens, entre 15 e 24 anos, na sociedade brasileira – fenômeno que só se verifica nas estruturas demográficas de sociedades que estão em guerra. Portanto, o Brasil vive as conseqüência de uma guerra inexistente e, mais que em qualquer outro, determinado setor social está pagando com a vida o preço dessa tragédia(...)
(O sentidos da violência, a criminalidade no Brasil e no Rio de Janeiro, por Luís Eduardo Soares, p. 246 a 249)


X A polícia
Os polícias? Olha, eu vejo aqui, eu sou bandido, mas se você for avaliar um polícia, você vai ter mais inquérito que qualquer marginal, porque cada mês ele mata um, todo dia ele rouba um. O salário de um policial não dá pra ele ter um Honda. Vai no posto. Dá uma olhada quanto Honda está parado lá. O que eu acho, cara, é que o sistema está podre, o sistema está todo podre,  os policiais, os deputados, os políticos. Então, eu acredito que se os políticos fossem mais cobrados não existiria essa pouca-vergonha toda aí. O político rouba, não vai preso; o polícia rouba; o polícia bota bagulho no seu bolso para te prejudicar...
(Os Polícias, depoimento de entrevistado, p.259)

XI Tristeza

(2) Celso mencionou a depressão desoladora que derruba os espíritos, nos bairros mais pobres das periferias e favelas. Canta-se em prosa e verso o Brasil zombeteiro, alegre e festeiro, que abre espaços para a felicidade, em meio até à miséria, com o futebol e o samba no pé. Nem tudo é fantasia e folclore, nessa mitologia de hedonismo tupiniquim, mas o momento exige um pouco mais de cuidado nas generalizações. As palavras de Celso, repito, são muito graves: a depressão campeia nas favelas. Estamos falando em de-pres-são. É forte o termo, e dolorosa a realidade. Cada um de nós sabe o que significa. O abatimento psíquico contamina o corpo, inibe iniciativas, arruína esperanças, reforça o medo, interpõe retraimento. Chega de folclore. Vamos reconhecer e tratar essa dor. Ela é conseqüência, mas também causa da violência. Aliás, como vimos, as conseqüências em geral se tornam causas e realimentam o círculo vicioso destrutivo e autodestrutivo. As próprias drogas; como pensá-las sem mencionar o sofrimento psíquico que produzem e de que se alimentam?


XII Como lutar nesta guerra?
Se nosso propósito é reduzir a capacidade de recrutamento do tráfico, melhor e mais realista do que tentar destruí-lo é dispor-se a competir com ele. O tráfico é um pólo de atração (...) Se o tráfico recruta, seduz, atrai, é porque oferece benefícios. Quais? Os benefícios são as evidentes vantagens materiais, como dinheiro e acesso ao consumo, e são também os bens simbólicos e afetivos, como a sensação de  importância e poder, o status , o sentimento de pertencimento a um grupo dotado se identidade – tudo isso significa valorização pessoal, reforço da auto-estima. Um bem simbólico especialmente prezado é a masculinidade, aquele tipo quase mágico de virilidade que se materializa como um diferente poder de sedução das meninas da comunidade e até dos bairros afluentes da cidade.
Às vezes qualquer emprego resolve; em geral, não é bem assim que acontece. Com freqüência, ouvi da rapaziada que não vale a pena repetir a trajetória de fracassos de sues pais. Eles não querem ser apenas pintores de nossas paredes, mecânicos de nossos carros, engraxates de nossos sapatos. Eles querem o que nossos filhos querem: internet, música, arte, dança, esporte, cinema, mídia, tecnologia de última geração, criatividade(...)
Quando (...)proporcionam aos jovens das periferias e favelas acesso à criação cultural e à expressão artística, na prática, lhes oferecem  um campo em que podem exercitar a própria subjetividade e expressividade, mostrando-se, inventando-se como pessoas,  ante olhares atentos e respeitosos de audiência, que os valorizam pela mera atenção que prestam. Tudo isso é simplificado se uma câmera acende sua luzinha, anunciando que, atrás de si, está presente um auditório virtual ilimitado(...) A luzinha representa atenção em si mesma. Esta atenção valoriza quem se sente ninguém, que se sente invisível. Ela ilumina a alma e alimenta um saudável narcisismo, que nada tem a ver com fetiches das celebridades de um mercado inatingível. Fica faltando o afeto? É verdade. Mas a atenção é uma forma tosca de afeto. Um primeiro passo.
(Rasga coração, por Luís Eduardo Soares, p. 281 a 286)

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